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14/12/2017

A suspensão da Rússia em PyeongChang-2018: uma tradição inventada

Há três semanas comecei a pensar sobre o próximo Jogos Olímpicos. Será o de inverno, eu sei, porém ainda sim manifesta e absorve as intempéries político-econômicas mundiais com óbvias consequências sociais. Além do mais, afim de aperfeiçoar meu objeto de estudo, sendo desenvolvido há longos cinco anos (https://outrafacedoesporte.blogspot.com.br/2017/03/atletas-independentes-olimpicos-e.html), decidi antecipar algumas coletas de dados referentes aos atletas que competem os Jogos sem uma nacionalidade, por já entender que poderia vir uma nova delegação olímpica não nacional em PyeongChang-2018.

O que foi previsto era o inevitável. Depois de alguns press releases do Comitê Olímpico Internacional divulgando penalidades para atletas russos dopados que ganharam medalhas e/ou participaram dos Jogos de Sochi – 2014, a maior das penalidades veio: a suspensão do Comitê Olímpico Nacional Russo de qualquer evento olímpico, assim como, o descredenciamento de qualquer chefe de Estado russo nas gerências, reuniões e organizações do COI. Consequência do esquema de doping estatal (é assim que chamo, mas você irá ler o doping sistemático por ai) revelado por grandes investigações. Doping estatal porque envolveu toda a cúpula esportiva russa, o Ministro dos Esportes e inclusive o Presidente Putin.

A abordagem aqui, portanto, não será a discussão sobre Doping no esporte (tema para outro dia), não será sobre se é certo ou não a punição para a Rússia ou simples relato de desdobramentos futuros. O que será discutido é a forma com que o Comitê Olímpico Internacional divaga, intermedia e resolve conflitos de mesma magnitude e suas possíveis consequências. Para isso, me pautarei no conceito de “tradição inventada” de Hobsbawm e Ranger. Tradição Inventada é entendida como um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente: uma continuidade em relação ao passado (1997, p. 10).



Sem mais delongas, a continuidade em relação ao passado (primeira tratativa da tradição inventada) referente à punição da Rússia é o dualismo que foi observado no período da Guerra Fria. A mão punitiva e pesada dos Membros do Comitê Executivo do COI para um lado do antigo bloco não é, nem de longe, a mão suave e parceira que cumprimenta o bloco oposto. Isso se valeu naquele período e vale para esse pois as investigações e punições de casos de doping, usado massivamente no próprio período da Guerra Fria por ambos os lados para conquistar as batalhas não ocorridas no âmbito militar, são “caolhas” dependendo da localidade e nacionalidade dos casos. Longe de mim de pensar que a punição para a Rússia foi injusta ou desnecessária, até porque o próprio Presidente Russo admitiu a culpa (http://espn.uol.com.br/post/748457_depois-do-sorteio-da-copa-e-da-suspensao-olimpica-um-anuncio-de-reeleicao) porém, excluir uma nacionalidade dos Jogos Olímpicos por doping é inédito e a pergunta que fica é: aconteceria o mesmo com as nacionalidades de atletas punidos por doping? Lembrando que houve casos de que apenas atletas foram punidos e não o alto escalão esportivo e seus governos.

A segunda tratativa da tradição inventada se dá pelos desdobramentos da punição. Sabe-se que quando uma nacionalidade é impedida de competir nos Jogos Olímpicos pelo COI, os atletas das respectivas nações não são postos no mesmo bojo dos ônus sofridos por seus dirigentes (http://outrafacedoesporte.blogspot.com.br/2016/07/a-diferenca-entre-os-atletas-refugiados.html). Esse fato criado após 1992, justamente com o fim da Guerra Fria, permitiu a esses atletas a participação nos Jogos sem sua bandeira nacional, mas sim, pela bandeira e hino do Comitê Olímpico Internacional. São eles, os Atletas Independentes Olímpicos e mais recente, o Time de Refugiados Olímpicos. Entretanto, quando tal impedimento atingiu e atinge a Rússia, ele é historicamente analisado, discutido e ponderado de maneira particular.

O primeiro acontecimento foi nos Jogos Olímpicos de 1992 com a criação da delegação olímpica Unified Team representando a Comunidade dos Estados Independentes (CEI)[1]. Desta forma, o Unified Team foi composto por cinco antigos membros da URSS: Rússia, Ucrânia, Belarus, Cazaquistão e Uzbequistão. Contudo, para reforçar a independência desses membros e a legitimação do fim da URSS, para as vitórias de equipes coletivas do Unified Team, o hino a ser tocado e a bandeira a ser hasteada deveriam ser do COI, enquanto que, para as vitórias em modalidades individuais, o hino e a bandeira a ser hasteada seria o do próprio Estado-nação, além da permissão do emblema de cada ex-membro da URSS estar presente na manga dos uniformes dos seus representantes nacionais.

Entendo que a CEI, representada pelo Unified Team, não é uma das delegações de Atletas Independentes Olímpicos (IOA) em detrimento de símbolos nacionais serem representados, embora com limitações e, por entender que a CEI é reconhecida pela Comunidade Internacional tendo seu papel como bloco econômico, já que algumas nacionalidades que compuseram a delegação dos IOA, não tinham o reconhecimento pela Comunidade Internacional. Ou seja, por mais que sejam semelhantes alguns preceitos com os IOA, o Unified Team não foi constituído pelos mesmos precedentes e sim apenas reconhecido pelo COI por uma questão de se adequar ao contexto em que vivia as nacionalidades da ex-URSS. Além do mais, vale ressaltar a importância que a antiga URSS oferecia aos Jogos Olímpicos em detrimento de resultados esportivos (ela, mesmo já extinta, ocupa o segundo lugar no quadro de medalhas geral dos Jogos Olímpicos de Verão com 1010 medalhas no total), de modo que o COI permitiu então a participação de seus atletas sob a égide de uma delegação diferente das nacionais e até mesmo dos IOA.

O segundo acontecimento, e agora mais sério quando se refere ao âmbito esportivo (considerando o doping como o maior assalto ao Movimento Olímpico), eu esperava que com a suspenção do Comitê Olímpico Nacional Russo por doping, a atenuação para os atletas russos considerados limpos (que nunca foram pegos em exames antidopings, não compactuavam com o doping estatal e aqueles considerados limpos por exames previstos antes de PyeongChang-2018), tivessem o mesmo tratamento daqueles atletas dos quais suas representações nacionais foram impedidas da mesma forma (Iugoslávia, Timor Leste, Antilhas Holandesas, Sudão do Sul, Índia e Kuwait) e que foram denominados de Independentes Olímpicos. Lembrando que os Refugiados Olímpicos têm os mesmos preceitos, porém, o contexto social deles e delas são diferentes.  Contudo, o COI determinou que os atletas russos considerados limpos irão disputar, sejam eles/elas de esportes coletivos ou individuais, por uma delegação olímpica não nacional, representados pela bandeira e hino do COI, chamada de “Olympic Athlete from Russia (OAR)” (https://www.olympic.org/news/ioc-suspends-russian-noc-and-creates-a-path-for-clean-individual-athletes-to-compete-in-pyeongchang-2018-under-the-olympic-flag). Ou seja, novamente as resoluções de conflitos e punições sancionadas pelo COI tramitam por um modus operandi de extremo dois pesos e duas medidas em relação aos membros nacionais. E cabe a pergunta, por que o não uso de tal delegação não-olímpica, os Atletas Independentes Olímpicos, para os russos? Já que a criação de tal delegação tem o propósito de permitir a participação de atletas que, por consenso, não poderiam ser punidos coletivamente.

Portanto, tais argumentos citados aqui provam que o desempenho esportivo, gerando resultados expressivos em edições olímpicas, obtém uma maior atenção por parte de quem gere e comanda os Jogos Olímpicos e o Comitê Olímpico Internacional. Outro fator importante é a força política e econômica que determinada nacionalidade infere nas finanças do COI é o que faz tais punições ou resoluções serem atenuadas, como um bate e afaga.

- Tradição inventada é a Rússia tentar novamente alcançar o patamar e o poder que possuíam quando era URSS e para isso se utiliza de megaeventos esportivos (Sochi-2014 e a Copa do Mundo-2018).

- Tradição inventada é alguns aspectos da Guerra Fria voltarem para frear a ambição russa e talvez o maior exemplo disso é a especulação da intervenção nas eleições norte americanas.
   
- Tradição inventada é a Rússia novamente ser a exceção da exceção com essa nova delegação em PyeongChang-2018.

HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A Invenção das tradições. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra S.A, 1997.



[1] Resultante do ocaso da União Soviética em 1991, a CEI foi criada com o intuito de ser uma Organização intergovernamental de caráter internacional muito semelhante a outros blocos econômicos como a União Europeia e o MERCOSUL. Formada em 8 de dezembro de 1991 por oito países oriundos da ex-URSS, o principal trunfo dessa Comunidade foi o desenvolvimento institucional de uma multiplicidade de regimes jurídicos entre diferentes categorias de Estados participantes. Outro fator relevante é a prevalência e o fornecimento da soberania nacional de cada Estado participante. Ou seja, a CEI foi criada para justamente servir como um período de transição até que as economias dos antigos membros soviéticos fossem recuperadas.