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25/07/2020

Os 70 anos da Copa de 1950: o reflexo da brasilidade

Há certos momentos, atos, minutos, acontecimentos que mudam abruptamente o percurso de nosso destino e nossa perspectiva de vida. Tais fatos jamais serão esquecidos por nós e serão tidos como pontos de partida para uma mudança que talvez, e eu repito, talvez seria necessária. Podemos citar alguns exemplos da vida cotidiana como um acidente de carro, um problema de saúde inesperado, uma desilusão amorosa ou profissional, a leitura de um livro e etc. No esporte isso é refletido em jogos, torneios e resultados e a Copa de 1950 no Brasil é talvez o maior exemplo de tal acontecimento inesperado que suas consequências são tão infinitas e suas narrativas são tão cercadas de um misticismo que se pode considerar como um vértice do futebol mundial (um percurso que é dobrado no meio para dar início a outro destino).

Eu estava na pós graduação da UNICAMP e fui convidado para ministrar uma aula sobre as relações entre esporte e sociedade. Preparando a aula e sempre tentando construir uma narrativa histórica sobre os fatos políticos brasileiros a partir das participações do Brasil em Copas do Mundo e como essas participações eram utilizadas por seus governos contemporâneos, eu sempre me deparava com uma pergunta interessante: E se o Brasil tivesse vencido aquele jogo e o mundial? Teríamos o mesmo futebol de hoje? Ou pior, será que existiria os times campeões em 58, 62 e 70? E Pelé, teria a mesma trajetória? 

Creio que você deve ter escutado que não existe o "E se" para historiadores. E faz sentido não ter. A história é feita de fatos, relatos e não achismos meramente mirabolantes que nos possam levar ao mundo ideal e utópico. Mas a própria história, muitas vezes, é contada sempre pela ótica positiva, do final feliz, dos vencedores, daqueles que obtiveram o sucesso. E quando a história não tem um final feliz (e acredite que há inúmeras delas) não há um espaço reservado em nossa mesa de bar, na imprensa, no nosso imaginário discutir ou pensar sobre algo que nos faz doer. Afinal de contas, estaria a Copa de 50 superada pelo três títulos mundiais em 12 anos que a seleção brasileira conseguiu. Por isso, nesse ano vimos mais homenagem e mais matérias sobre os 50 anos da Copa de 1970 do que os 70 anos da Copa de 1950. 

De fato, é um tema mais espinhoso de discorrer. A Copa de 50 não foi qualquer Copa. Simples assim. E também já mais foi tida como um mero evento esportivo mundial. Resumindo: era a primeira edição pós Segunda Guerra Mundial; era um momento de promessa e esperança de um crescimento e desenvolvimento do Brasil que até hoje esperamos ter e nunca tivemos (e a obra e construção do Maracanã é um exemplo disso); e de um momento que evidenciou o preciosismo de se achar soberano. Nem dentro de campo foi uma Copa "normal" pelas mudanças no formato de disputa, desistências de seleções europeias por conta da reconstrução pós Segunda Guerra, convites para seleções de última hora, goleadas encantadoras do Brasil (7x1 contra a Suécia e 6x0 contra a Espanha) e o recorde de públicoem um só jogo de uma Copa do Mundo: 173.850 pessoas.

Entretanto, o que mais quero escrever hoje não é uma análise sobre o jogo da final ou as causas da derrota, mas sim, como essa derrota se porta como um reflexo enquanto sociedade brasileira no seu modo mais cru e nu de sua cultura.


- O primeiro aspecto é o pensar demasiadamente grande. Não há erro algum em pensar grande no sentido de uma perspectiva futura desde que seja algo planejado e prevendo riscos. O problema é criar algo enorme e sem perspectiva futura de legado quanto menos prevendo tais riscos. E a Copa de 50 é um exemplo por conta de autoridades e governantes da época supor que, pela organização de um evento mundial no Brasil, pudesse fornecer prosperidade econômica e social. Cabe ressaltar que costumeiramente os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo são utilizadas como molas propulsoras de um progresso econômico já em curso e não usadas como um start para tal. Com isso, a derrota na final nos leva, além de um luto coletivo de tamanho estratosférico, á um encerramento da esperança e da promessa de um projeto de nação e prosperidade econômica jamais vista.

- O segundo aspecto é o racismo. Tal crime impregnado em nossa cultura foi tão presente nessa derrota que as consequências pós 1950 foi tamanha que havia dirigências da Confederação Brasileira de Desportos contrárias a convocações e escalações de negros nas seleções brasileiras. Outro fato importante e não menos grave é de quem a culpa foi designada. E a figura do goleiro Barbosa é tão emblemática para a discussão do racismo ao ponto do próprio cunhar essa frase: "No Brasil, a pena máxima é de 30 anos. Eu paguei a vida inteira por causa de uma derrota". Culpar Barbosa e os outros dois negros que faziam parte do time (o lateral-esquerdo João Ferreira - Bigode - e o zagueiro Juvenal Amarijo) reflete o racismo escancarado em tentar aliar a cor da pele com o fracasso tão recorrente no cotidiano brasileiro, nas nossas instituições, ações e comportamentos.



- O terceiro aspecto o qual é estritamente ligado ao ponto anterior é o de sempre tentar achar um culpado. Não só 1950 que reflete isso, mas todas as outras derrotas em Copas subsequentes sempre foram cercadas de culpados já sentenciados pela opinião pública e pela imprensa esportiva. Isso nos causa uma cegueira eterna e um obscurantismo enorme ao olhar para os erros, diagnosticar problemas e projetar futuros acertos. Em certo modo, pós 1950 houve esse diagnóstico, ajustes, mudanças e acertos grandes que nos levaram a era de ouro. Porém, o estigma da culpabilização foi profundamente enraizado em nossa cultura com o exemplo de Barbosa.

- O quarto aspecto é como uma derrota afeta a coletividade brasileira e nos carrega para um complexo de inferioridade em que sempre "a grama do vizinho é mais verde do que a minha". Sobre isso, Nelson Rodrigues escreve e denomina de complexo de vira-latas. Curiosamente, seu gatilho foi exatamente a derrota em 1950 e o descrédito que a seleção de 1958 levava consigo no embarque para a Suécia. De fato, no fracasso tudo parece perdido e irremediável ao ponto de sempre olharmos com inveja e uma sede de pertencer àqueles que possuem o sucesso mesmo que seja momentâneo. O tal do complexo de vira-latas se faz tão presente que é notória sua presença em questões políticas internacionais e econômicas até hoje.

- O quinto aspecto e último é o de sempre não prestigiar quem venceu. Falo quanto nunca lembrarmos do que fez futebolisticamente as seleções que eliminaram o Brasil. No caso de 1950, o Uruguai, que era duas vezes campeão olímpico, campeão sul-americano e já tinha um título da Copa do Mundo em 1930, fez uma estratégia de segurar a seleção brasileira a um ponto de demonstrar frieza e não abatimento mesmo saindo perdendo por 1x0.  Como diz Obdulio Varella nessa entrevista em 1972 (https://trivela.com.br/as-copas-em-16-de-julho-obdulio-varela-e-o-sentimento-que-o-tomou-apos-o-maracanazo/) o principal pensamento era não deixar a seleção brasileira tomar o ritmo de jogo, esfriar o seu ímpeto demolidor, marcar na pressão e usar os contra ataques. Deu certo e eles merecem os créditos. Jamais podem ser escanteados nessa história pois eles eram a seleção que na época era a ser batida por todas as conquistas que possuíam.

Por fim, a derrota em 50 foi tão trágica que a seleção brasileira só foi jogar novamente dois anos depois com um uniforme diferente (até o dia 16 de julho de 1950, o Brasil usava camisetas brancas e após 1950 passaram a usar a cor amarela). A data da final virou dia pátrio no Uruguai e por alguns anos o Maracanã era tido como um lugar azarado.

As perguntas que fiz no começo do texto são difíceis de responder. Se o Brasil tivesse vencido aquela final, os rumos da seleção brasileira , a trajetória de Pelé e talvez a história política e econômica do país fosse diferente. Não falo isso por apenas um título de Copa do Mundo pudesse mudar a trajetória de um país e etc., mas sim, pela mudança de um sentimento coletivo melhor, mais alegre, mais próspero, mais disposto a acreditar em o que nós somos capazes de fazer enquanto nação. Além do mais, a relação entre os resultados da seleção brasileira em Copas do Mundo com os sentimentos de pertencer á um coletivo nacional é tão profunda que podemos sim acreditar que a campanha em uma Copa do Mundo pode definir o futuro do país em vários aspectos.

Mesmo que seja, em alguns olhares, apenas uma derrota no campo esportivo, a Copa de 1950 e o Maracanazzo é a maior derrota que possuímos (maior do que o 7x1) por puramente mudar aquilo que sabemos sobre futebol, mas por principalmente escancarar e refletir todos os aspectos de uma coletividade frágil que a brasilidade possui. Não há nada mais didático do que essa relação.




18/07/2020

50 anos do tri campeonato do mundo: A história não é estática

Nossa cultura esportiva venera apenas a vitória, o resultado, as coisas positivas de uma forma tão intensa e abruptamente cega que nos faz apenas pensar em valores, crenças, histórias e fatos positivos. Atualmente, no nosso cenário histórico, essa cultura me soa bem negativa. Principalmente quando penso o que será no futuro. Tentando voltar a estudar e escrever, uma das primeiras frases que leio numa obra sobre esportes e seus cenários sociais é " A história do esporte pode ser tudo menos ser estática". E será por esse pensamento em que vou me basear para escrever sobre os 50 anos do melhor título do futebol brasileiro.

A história do esporte jamais é estática (e essa frase nunca me ocorreu no meu período de acadêmico). Ela faz tanto sentido, pois venho falando desde sempre que o esporte é tão neutro ideologicamente que essa sua característica particular o faz ser usado para o lado negativo e positivo da esfera política e econômica. A Copa de 70 para o Brasil é o maior exemplo desses dois lados andando juntos eternamente e precisamos, daqui para frente, fazer existir a caminhada de ambos para sempre. 

A seleção de 70 é considerada o melhor time de futebol da história. E isso é indiscutível por conta dos nomes que a compunha, pelo futebol que apresentou e também pela preparação exercida para aquela ocasião. Novamente, o título, a campanha, os jogadores, a preparação, todo o conjunto e etc são indiscutíveis. As comemorações, o zelo, as lembranças, as reverências, homenagens. Tudo. Todas essas coisas são indiscutíveis e merecem a nossa atenção e palmas. 



Entretanto, o que é também indiscutível é o papel da ditadura militar e de militares na preparação e no dedo da logística da seleção de 70. A intervenção militar com fins políticos (desviar o foco em torturas, prisões, assassinatos, corrupção, autoritarismo e etc.) é o lado não estático dessa história a ponto de fazer com que os atletas brasileiros (que pouco sabiam o que realmente estava acontecendo no país) agradecessem os militares até hoje, incluindo carta enviada de Pelé para Ernesto Geisel, o capitão Carlos Alberto Torres (num documentário) dizendo o que apenas importava para o grupo era o título da Copa e não que acontecia no Brasil e Rivelino afirmando que não fosse os militares, dificilmente o time chegaria tão pronto e formado para ganhar da forma como ganhou aquela Copa.  

Além do mais, é muito difícil afirmar que por conta do intervencionismo militar na seleção, essa história seja considerada manchada. Difícil pensar isso porque realmente se não fosse os propósitos político da ditadura, poderíamos até ganhar mas não da forma como foi. É por isso que a história dessa seleção não é estática e jamais poderá ser. Brasil coroou sua geração de ouro com um brilhantismo em campo e um obscurantismo fora dele. Assim, a música tema "Pra frente Brasil, salve a seleção" deve ter duas conotações históricas. 

Toda história tem seus dois lados e jamais podemos pensar e contar o lado vitorioso do assunto porque a vida não é assim. 

Uma dica importante de audiovisual sobre esse tema é uma série do jornalista Lúcio de Castro:
Memórias de chumbo: o futebol nos tempos de Condor:





Obrigado pela leitura.